segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O GRANDE DESPERDÍCIO




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...”As medidas de nossos atos são dadas pela jornada de vinte e quatro horas”.

O argumento fundamental, capaz de esclarecer o público norte americano, antes de nenhum outro, sobre as minhas proposições de reforma arquitetônica e de reorganização das cidades é, precisamente, que nossa jornada solar tem sido desrespeitada. Que em conseqüência da negligência e pela insaciável voracidade do dinheiro foram tomadas, em matéria urbana, iniciativas nefastas. O trabalho, o imenso trabalho de desenvolvimento da cidade, é regido por este proveito e vai contra o bem estar dos homens. Somente invertendo esta situação falsa poderemos encontrar as alegrias essenciais. É dentro da jornada solar de vinte e quatro horas que o equilíbrio deve existir, de onde devemos instaurar um novo equilíbrio. Fora disto, não há salvação!

Expresso por um círculo (figura 1) a jornada solar atual tanto nos Estados Unidos como na Europa.

O primeiro setor de oito horas (A) representa o sono. Assim, nas manhãs de cada dia, a jornada será nova e fresca. Em (B) temos uma hora e meia perdida nos transportes coletivos – trens, metros, ônibus, bondes – .  Em (C) temos 8 horas de trabalho que representam o trabalho individual atual na produção necessária. Em (D) temos novamente os transportes coletivos: tempo desperdiçado. O saldo (E) são as cinco horas noturnas de tempo livre: mesa familiar, vida dentro da concha de caracol: a casa. Que casa?


                                  

Vocês querem me dizer quando, nesta jornada rotineira, esta jornada que dura o ano inteiro, a vida inteira, quando o homem – este animal físico estruturado, coberto de músculos, animado por um circuito sanguíneo, atravessado por uma rede nervosa, alimentado por um sistema respiratório –, quando esse ser vivo, com seu mecanismo sutil e delicado, poderá fazer com sua própria máquina o que é necessário fazer com todas elas: a limpeza, o cuidado, o reparo? Nunca. Não há tempo para isto! Não há lugares previstos para isto! Digam-me, também, quando esse ser ,organizado desde milhares de anos, abandonou a lei solar, digam-me quando e onde oferecerá seu pálido corpo aos raios regeneradores? Como uma planta no sótão, vive na sombra. O que respira? Vocês sabem bem. O que vêem? Também sabem bem, o tumulto esgotador das cidades de hoje. Seus nervos? Decompõem-se sem nunca se restabelecerem. 

Desenho (fig. 02) o contorno indeciso que limita a região urbana. No centro(M) está a cidade, o bairro dos negócios. As indústrias estão dentro do contorno. A estupidez da desordem e da imprevisão. Esta região urbana é uma reserva imensa, portanto contém 2,3,5,7,10 milhões de seres humanos. Seu diâmetro é de 20, 30, 50, 100 Km. Vocês, os norte-americanos, superam todos os recordes: as regiões urbanas de Nova York e de Chicago possuem 100 km de diâmetro. Que dispersão! Para que? O que dispersa milhões de seres, que os faz ficarem tão longe um dos outros? Por que? É que todos estes homem perseguem um sonho quimérico¹: o da liberdade individual. Porque a atrocidade das grandes cidades é tal que um instinto de salvação empurra cada um a fugir, salvar-se, a perseguir a utopia da solidão. A reivindicação fundamental: a liberdade. São milhões os que querem, assim, voltar a pisar o pasto verde da natureza, os que querem voltar a ver o céu, as nuvens e o azul, os que querem viver com as árvores, esses companheiros da época sem história. Milhões! Por lá vão, lançam-se e agora são milhões considerando que seus sonhos foram assassinados! A natureza se desfaz debaixo das fábricas; ocupam as casas, as estações, os grandes armazéns.     

                

Essas casas são milhões. Formam as cidades jardins (R), criação dos fins do século IXX, aprovada, favorecida, santificada pelo capitalismo: as cidades-jardins, eclusas da grande torrente dos rancores acumulados. Com essa multidão gigantesca, com essas montanhas de condenações e reivindicações, temos um povo dispersado aos quatro ventos do céu: cinza inerte, pó de homens. O estatuto social, egoísta e parcial, prolonga sua vida deste modo.

Nos limites das cidades – jardins desarticulados – está o céu desvanecido. Quando chegam os homens, às oito horas da noite, têm os braços tão cansados quanto as cabeças. Calam-se e vão para suas casas.

Foi perfeitamente destruída toda força coletiva – essa admirável potência da ação, esse entusiasmo, esse criador do civismo –. Esmagada, abandonada, envelhecida, a sociedade vive. Os fomentadores das cidades-jardins e os responsáveis pela desarticulação das cidades têm proclamado em alto tom: “filantropia primeiro; para cada qual seu jardineiro, sua casa, sua liberdade assegurada”. Mentira e abuso de confiança! A jornada não tem mais do que vinte e quatro horas! Recomeçará, amanhã, toda a vida. E toda esta vida é apodrecida por uma desnaturalização do fenômeno urbano.

Volto a desenhar o contorno da região urbana (fig. 03). Coloco a “city” (M). Nestas vinte e quatro horas deve-se acontecer tudo: o movimento furioso dos milões de seres no círculo do seu inferno. Se criaram – já o decido – os T.C.R.P. e os T.C.R.X: os transportes coletivos das regiões P e X. Primeiro ferrovias (S); as vidas nos trens: estação, vagão, estação. Logo os metros (U); logo as estradas (Y): estradas para os bondes, os ônibus, os automóveis, as bicicletas e os pedestres. Reflitam sobre isto: as estradas passam diante da porta de cada uma das casas da prodigiosa, fantástica, louca região urbana! Façam-me o favor de tomar consciência da rede fabulosa das estradas da região urbana.

Entremos agora em uma das casas da região. Nos Estados Unidos, por exemplo, infinitamente maior e melhor do que na França, há aqui a comodidade: luz elétrica, gás para a cozinha, água corrente na pia e no chuveiro, telefone. Os condutores, abaixo da terra, ocupam a inumerável região formando uma rede difícil de imaginar, uma rede com cem quilômetros de diâmetro.

Muito bem!

Quem o paga?

Desta vez a pergunta fica formulada: quem o paga? 

Contestar-me-ão vocês: “é exatamente o trabalho dos tempos modernos, o programa de nossas indústrias e nossas empresas. A abundância”.

Friamente contesto: tudo isso é para fazer vendaval e nada mais. Isso não contribui em nada para ninguém, posto que essa liberdade apaixonadamente buscada, não é nada mais do que vendaval e ilusões: desastre da jornada inconclusa de vinte e quatro horas.

Quem o paga? O estado! De onde tira o dinheiro para isto? Dos nossos bolsos. Impostos esmagadores e dissimulados, somados em tudo o que consumimos: nos armazéns, sapatos, transportes, teatros, cinemas. Por que pagamos, em Paris, 2,10 francos no litro de gasolina quando ela custa 0,25 francos ao desembarcar, com tudo pago, a extração, as jazidas, o trabalho da refinaria, a administração e os dividendos dos acionistas? 2,10 francos? Compreendo!

Compreendo que o gigantesco desperdício Norte Americano e o Europeu – a desorganização do fenômeno urbano – é uma das cargas mais esmagadoras da sociedade moderna. Não é o programa das suas indústrias e empresas! Um mal passo, sobre premissas falsas. A liberdade, eh? Sim, de brincadeira! A escravidão das vinte e quatro horas! É isso!

A conclusão. Pego um giz preto e ,no setor das oito horas de  participação das produção individual necessária, cubro a metade : a metade com preto – a morte –.  Trens, metros, caminhos e todas as conduções e suas respectivas administrações, o pessoal da exploração, o que ajuda a manter e reparar e o policial que ergue seu cacetete branco: todos demonstram o desperdício estúpido dos tempos modernos. Vocês pagam, nós pagamos a cada dia por isto. Por quatro horas de trabalho inútil. As estatísticas norte- americanas nos dizem: “o governo dos Estados unidos toma 54% do fruto do trabalho geral”. Este é o fato.

O dólar não tem auréola. Não há ouro sobrando nos Estados Unidos. Depois da tragédia que ocorreu após a euforia dos abastecimentos bélicos, os norte-americanos se voltam à realidade: onde está o vício do sistema, onde está o novo caminho? Voltaram-se com dificuldade, lutando pára arrancar 4 centavos do desperdício, 4 centavos para viver!

A produção útil para a sociedade é o calçado, a roupa, o abastecimento sólido e líquido, a moradia (o refúgio, em geral), os livros, o cinema, o teatro, a obra de arte. Do mais, não é nada além de vento. Furacão sobre o mundo, o grande desperdício.

O veredicto está pronunciado. Faremos a proposta construtiva, determinaremos o programa dos tempos modernos: reconstrução das regiões urbanas, dos campos.

Desenho, na mesma escala, a cidade dos tempos modernos. Não tem subúrbios. A técnica moderna permite ganhar em altura o que se perdia em extensão. A cidade estará concentrada em breve. A questão dos transportes se resolve sozinha. Voltamos a encontrar nossos pés. Em um edifício de 50m de altura podemos alojar 1000 habitantes/hectare: uma super- densidade. Os edifícios cobrem apenas 12% do solo, os outros 88% são destinados aos parques; os esportes se instalam neles: os esportes ao pés das casas. Na periferia as cidades terminam diretamente nos trigais, nas pradarias e nas hortas. O campo as rodeia (L), os automóveis – um milhão e meio de automóveis por dia em Nova York – são precisamente a enfermidade, o câncer. O automóvel será valioso nos finais de semana, não todos os dias, para penetrar nas ternas vegetações da natureza, a dois passos da cidade.

Concluo: desenho um novo círculo de 24h solares (fig. 05), 4hde trabalho produtivo, participação individual necessária e suficiente na produção coletiva; as máquinas operam seu milagre (C), meia hora de transporte (D). Sobram 11h para os ócios cotidianos.

O grande desperdício norte americano me permitiu aprofundar a aventura dos tempos modernos e ver com mais claridade. Compreendo.

Esses dois discos representativos da jornada solar expressam pura e simplesmente o passado e o futuro.

E essas 11h de ócio tenho muito prazer de renomear: a verdadeira jornada de trabalho da civilização mecânica. Trabalho desinteressado, sem proveito, dono de si, cuidado do corpo, esplendor do corpo; moral sólida, ética. Ocupações individuais livres. Livre participação dos indivíduos em empresas e jogos coletivos. Sociedade em que funcionam todos os motores: o individual e o coletivo, nesta medida justa e proporcionada que é o jogo da própria natureza – a tensão entre dois pólos –. A população está entre dois pólos; um deles, por si só, tende ao zero; os extremos matam a vida, e esta existe no médio, no médio e justo. O equilíbrio não é o sonho, o atropelamento, a letargia, a morte. O equilíbrio é o local em que se conjugam todas as forças, a unanimidade

E é assim que o urbanista pode ler o destino das sociedades.

Sobre tais bases individuais posso, nos Estados Unidos, propor a grande mudança de suas cidades: reorganização dos equipamentos dos países em benefício dos homens. É, ao mesmo tempo, o programa das grandes obras e, como conseqüência, a salvação da indústria, que será regida por objetivos reais.

Assim se desenha a aventura.

Portanto, é preciso lançar ao mundo a aventura!

Lançar as pessoas à aventura! ... os espíritos fortes podem desejar este jogo. Mas e os demais? Tremerão dos pés às cabeças.

Então, que os espíritos fortes lancem a catapulta, que comece a aventura. Tudo será novo. A água, a gente! Não terão outro remédio se não nadar; nadarão e o sal da água os fará alcançar a ribeira.

Ao regressarem, meus companheiros de mesa, a bordo do La Fayette², diram-me: “evidentemente, se os construtores das catedrais percorressem a distância do tempo até a Paris moderna, poderiam exclamar: Como? Com os seus diferentes tipos de aço – macio, duro, cromado, entre outros – com os seus cimentos Portland artificiais e os elétricos, com seus elevadores, perfuradores, escavadeiras, cálculos, ciência da física, da química, da estatística, da dinâmica, meu deus!Não fizeram nada digno e humano! Não fizeram nada que ilumine seus arredores! Nós, com pedras talhadas pacientemente e ajustadas sem cimento, umas as outras, fizemos as catedrais!


LE CORBUSIER, QUANDO LAS CATEDRAIS ERAM BLANCAS (VIAJE AL PAIS DE LOS TIMIDOS), EL GRAN DERROCHE, 1948.




5 comentários:

Wilson Leão disse...

Muito bom o texto.

O saldo (E) são as cinco horas noturnas de tempo livre: mesa familiar, vida dentro da concha de caracol: a casa. Que casa?

Isso em 1948, hoje é muito pior...

É que todos estes homem perseguem um sonho quimérico¹: o da liberdade individual.

Mas e qual o propósito da vida sem essa busca? O que seria liberdade coletiva?

Friamente contesto: tudo isso é para fazer vendaval e nada mais. Isso não contribui em nada para ninguém, posto que essa liberdade apaixonadamente buscada, não é nada mais do que vendaval e ilusões: desastre da jornada inconclusa de vinte e quatro horas.

Vivemos em um mundo de ilusão? Qualquer paralelo com a atualidade seria uma ironia? ironia > Viva à liberdade imposta! < ironia

A liberdade, eh? Sim, de brincadeira! A escravidão das vinte e quatro horas! É isso!

\o/ Liberdade!

Concluo: desenho um novo círculo de 24h solares (fig. 05), 4hde trabalho produtivo, participação individual necessária e suficiente na produção coletiva; as máquinas operam seu milagre (C), meia hora de transporte (D). Sobram 11h para os ócios cotidianos.

11h Para ócios cotidianos? O mundo suportaria essa quantidade de ócio? Isso em 1948, imagine 11h de consumismo norte-americano per capita, nem como uma frota de máquinas isso seria contrabalanceado.

EL GRAN DERROCHE, 1948.

Em pensar que é de 1948... Um paralelo com a atualidade seria desastroso. Felizes são aqueles que romperam a eterna mesmície da vida, seria egoísmo pensar que poucos deveriam ter esse privilégio? Ainda não o tenho... tu tens? O autor tinha?

Carpe Diem!

Desculpe só dar a minha opinião sobre o lado sócio-cultural, político, econômico e científico tecnológico (rs rs) do assunto, não tenho parâmetros para analisar o restante.

Arthur B. Senra disse...

bom texto.

amanda disse...

então, esta edição em espanhol é de 48, mas o texto é de 35... mais de 10 anos antes! e hj em dia, com todas as máquinas que possuímos e o número de habitantes (inclusive os milhares que são desperdiçados diariamente pelo mercado, é só ver o número de desempregados) conseguiríamos mais tempo livre ainda! é o milagre das máquinas! que muitos vêem como vilã! na minha opinião, não usamos ela como poderíamos...

amanda disse...

e mais! os habitantes teriam perspectivas maiores nas horas livres do que ficar no shopping. isto é, para mim, falta de perspectiva de vida, o que vemos mto nos dias de hj.

iluminati disse...

nao sei quanto tempo de sobra teriamos se mudassemos nosso sistema de produção, mas sei bastante lugares onde simplesmente jogamos fora trabalho humano, no desemprego sem sentido (os desempregados sao apenas mao de obra desperdiçada, pois sao rotativos, basta apenas parar essa rotação, porem é completamente impossivel no nosso sistema), na repetição, cada empresa tem seu grupo de cientistas pesquisando melhorias, que nao sao compartilhadas, assim muitos grupos chegam ao mesmo lugar, porem cada vez gastando o mesmo tempo de trabalho humano, controle de mercado, lei fundamental da oferta e procura é de que se vc controla a oferta vc controla o preço, entao necessariamente vc ganha mais produzindo menos do que voce pode, e por fim em guerras e produtos de segunda linha, ambos com o mesmo proposito, destruição para reconstrução
bom, eh isso que aprendi de economia uhahuahu