quinta-feira, 9 de outubro de 2008

traços da tradição

A intenção ao postar os dois textos abaixo é refletir sobre as sensações que tenho nestes últimos dias. 

Para esclarecer mais o assunto, sempre li sobre a América e seu grande potencial, por ser um continente que não é preso à tradições. Um dos únicos continentes aonde poderíamos construir uma cidade como Brasília, ou o Ibirapuera, o MASP, o Aterro do Flamengo entre outros projetos com ideais modernistas, pois apenas um país livre do pensamento de apenas reproduzir o que seus avós e bisavós vivenciaram conseguiria seguir o rumo da história e das transformações tecnológicas.

Estes dois textos falam um pouco sobre isto. E eu já os li e reli, porque sentia neles uma realidade e vontade de construir uma cidade nova, uma cidade para os homens, com as necessidades dos dias de hoje, sem nos prendermos a tradições, deixando, assim, o pensamento voar para diversos ideais, sugestões de um belo futuro. Realmente é o projetar para o futuro das cidades dos homens. 

Esta sensação existia mas nunca entendia bem o que era estar preso à tradições. E é aí que entram as novas sensações deste mês.

Estou cursando um ano, aqui em Portugal, na Universidade do Porto, a faculdade de arquitetura e urbanismo. E tive a minha primeira semana de projeto!

Que alegria quando vi a área! Bem grande, ao lado do mar, com um grande passeio no qual muitos andam olhando o belo Atlântico, outros conversam, namoram, andam de bicicleta. São diversos os usos e o local é encantador. Aqui o sol se põe no oceano e os finais de tarde são magníficos. Além desta bela área, também temos um parque que, em comparação com outros que já vi na cidade, não é muito belo. Muito preso a formas e pouco às necessidades. Poderia ser mais usado pela população se fosse projetado para os usos dos dias de hoje, com a beleza natural da região como ponto principal de sua existência. Mas nada disto foi feito. Meu primeiro pensamento, quando o vi, foi: Reformularemos o espaço e manteremos o seu uso, um parque, porém com um novo desenho, muito mais apropriado e convidativo nas tardes ensolaradas!

E a primeira sensação que senti foi os alunos horrorizados com minha atitude. Como eu poderia pensar em redesenhar um parque no qual o avô -no caso a praça não é muito antiga, segundo os portugueses ela é no estilo francês e deve ser do final do século XIX- deles havia sentado e contado tantas histórias sobre o local! 

E foi aí que realmente compreendi o quanto vivemos na América, um território livre de tradições, no qual poderíamos redesenhar todas as cidades. Repensá-las!  E voltei a sonhar com o futuro. De volta ao Brasil!


o espírito da américa do sul

Em quatorze dias um navio nos transporta ao outro lado do Oceano. Tivemos tempo de esquecer o tumulto continental, a solidão das águas acalmou-nose eis-nos aqui intensamente receptivos; vamos conhecer um outro mundo.

Ao cair da noite, uma linha de luzes elétricas cortou em dois o enorme vazio, separando as águas do ar. Essa linha é a Terra, vista em parte, representada por uma entidade quase irreal: os cais iluminados da nova América.

Desembarca-se. Um carro transportou-nosao coração de uma geometria violenta: a cidade. A cidade é o homem. As profundas meditações feitas no “deck” do navio são esquecidas; a um ritmo marcado, a um

tempo de marcha,—um, dois, um dois,—a ação humana nos empunha. Desde o primeiro “bock” colocado na mesa de um bar da Avenida de Majo, os amigos—a esta altura ainda desconhecidos nos dizem, num assomo de franqueza: “Você verá, nós somos assim”. Que golpe! Um boxeador não bateria mais forte: será assim durante dois meses.

Poderíamos ter-nos esquivado e dito: “Primeiro EU”. Mas, estou ávido: escuto, olho e sinto. Posso julgar? Um julgamento é uma sentença definitiva. Sentenciar é deixar de escutar, de ver. É pretender saber. Não

julgo nem julgarei. Prefiro sempre receber. Aliás, o assalto incessante dos elementos exteriores parece-me ter como efeito nos espíritos criadores, o de concentrá-los, comprimi-los, personalizá-los mais do que nunca, cristalizá-los. Nunca me senti tão inventivo como nesses períodos de viagem onde somos perseguidos, martirizados: que ocorra um instante de solidão e o parto se realiza: a idéia nasce, profunda, livre das mesquinharias quotidianas, munida de uma trajetória de longo alcance; a eles, propomos o nosso sentimento, por uma equivalência de situação, com toda a profundidade das verdadeiras e primeiras causas.

Para melhor me explicar, serei objetivo: No Ocidente europeu, carrego comigo já há vinte anos, propostas de urbanização de cidades que são revoltas contra a desordem, que são uma tentativa de ordem. Se o Expresso me conduz a Moscou e o transatlântico a Buenos Aires, se suporto toda a gama de climas e estações, o espetáculo de costumes diversos, todo o choque de raças profundamente diferentes, o consumo de voltagens discordantes, meu Ocidente desintegra-se, desembaraçando de suas mesquinharias supérfluas, dosrestos da epiderme morta. Surge o essencial, decantado: o homem, a natureza, o destino. O motivo e a razão de ser, o caminho que leva a uma razão de viver. E, tendo penetrado a fundo no caso de Paris, cidade milenar, eis-me apto a compreender, numa linha natural, o caso de Moscou, cidade que não é senão um nome e da qual deve-se fazer a máquina pensante da formidável experiência russa, e o de Buenos Aires que já é um nome e cujo destino parece-me próximo e imenso. E o Rio, e Montevidéu e São Paulo. E pouco depois Argel, cidade que se abre para o futuro.

Fui o milésimo ou o primeiro a prever através da geografia, da topografia, do clima, da marcha cíclica das raças, o destino próximo de Buenos Aires? A ter desenhado num papel o esquema fatídico que fomentou nos

EUA, Nova Iorque e na Argentina, Buenos Aires? A ter percebido, desde 1929, a sombra que se estenderá sobre Nova Iorque e a luz que brilhará sobre Buenos Aires? A ter pensado que havia chegado a hora da raça latina após o cumprimento da etapa anglo-germânica? A imaginar que dois mil anos de cultura poderiam enriquecer uma raça e não necessariamente envelhecê-Ia?

A admitir que à hora da propulsão, da explosão que eleva prodigiosamente as energias anglosaxônicas e que precipita o mundo moderno no caos, sucederia a hora cartesiana da medida, da leitura, da escolha, da proposta, da construção, da realização do equilíbrio?

E que o amargo mundo moderno, crispado, ofegante, poderia em breve voltar a sorrir?

Qual é a atitude mental dessas populações a quem o destino reserva majestosas e iminentes aventuras?

...O navio entra e sai dos estuários, prosseguindo seu caminho em direção ao largo; ao longo das peregrinações mundiais por todas as costas desta terra, vê-se o forte genovês, o forte espanhol, o forte português patrulhar o mar e enfrentar as terras; uma flor de geometria no cruzamento dos postos de mar e terra, comanda, patrulha e protege; um cristal de civilização. Todo esse imenso élan da Renascença, esse entusiasmo, essa curiosidade, esse amor pela aventura que é vida e não estagnação, que é ação e não submissão, que é juventude e não lassitude e velhice, que é, aurora e não crepúsculo. A Idéia, dominadora, sacode todas as fronteiras. São homens livres, indivíduos, cabeças fortes, fortes cabeças que partiram para assumir comandos, construir, colonizar. Colonizar é pura e simplesmente deixar para trás os chinelos e incorrer na aventura. O sábio, o artista, colonizam a cada dia. Descobrir, logo revelar. Revelar, conseqüentemente mudar a face das coisas.

Mudar a face das coisas, dar ao ontem um amanhã. As fortalezas dos estuários são cabeças que comandam, patrulham e protegem. São elas que encontramos a cada estuário sul-americano, quando o navio chega.

Atrás dessas altivas fortalezas, após o desembarque, não se encontra senão precipitação, casas de opereta, arquiteturas Nénot e Sociedade das Nações!

Inconsciência ou derrotismo. Ora, simples reflexos (aqui perdoáveis) apressados, irrefletidos das nossas conscientes minuciosas e miseráveis capitulações do Ocidente. Esses sujeitos da América que vieram para cá com outras finalidades, aludiram, desta forma, tímida e puerilmente aos hábitos europeus dos quais, em vindo aqui, desligavam-se. O que vinham fazer?

Duas coisas: a primeira, pouco nobre: ganhar dinheiro. A outra, digna: aventurar-se, tendo-se libertado das servidões triviais de países domesticados como um estábulo de cavalos de aluguel.

As cidadelas, à entrada dos estuários, representavam esse decreto emanado das poderosas autoridades de então: “Procurar o desconhecido, conquistar terras novas, ver, aprender e nos informar”. E como o navegador levava em sua caravela plantas de cidadelas e de cidades! Eis toda a diferença: nesse caso, ía-se para ver e voltar fortes e gloriosos. No outro, parte-se enraivecido para nunca mais voltar, pois nada nos segura mais.

Para o viajante contemporâneo, que hoje desembarca nesses portos da América batizados há alguns séculos pelos “Conquistadores” um fato é bem perceptível: desde 1900, há duas gerações, uma nova civilização explode. E a América do Sul está destinada a uma ascensão legítima. Provas abundam—flores de modernidade desta vez—e já bem impressionantes: os brilhantes cais do Rio, os mais belos do mundo. A avenida Alvear de Buenos Aires que está para a cidade como o Paraíso está para o Inferno. Este arranha-céu inimaginavelmente divertido de Montevidéu e, mais ainda, essas praias extremamente modernas, perto das quais situam-se lindos quarteirões residenciais. E em São Paulo, essa opulência nobre de certas avenidas, ornadas de habitações no estilo da Munique anterior ao modern-style, impagáveis e engraçadas, no país dos plantadores de café que são como os vice-reis de antigamente.

Ingênuos e tímidos como os pensionistas de um convento. De repente, magníficos e luminosos, verdadeira América do Sul. Depois, desastrosamente medrosos. Tomados do medo do ridículo, fazem referência ao senhor Nénot, que construiu a Sorbonne no século XIX, envolveu-se no vergonhoso troféu de açúcar do monumento a Victor Emmanuel na Praça Veneza de Roma, e que traz ao século XX uma imitação da Versalhes destinada a glorificar os atuais reis da Sociedade das Nações. a Europa burguesa é um peso para a América do Sul.

Libertai-vos! A Europa burguesa está virtualmente enterrada. É chegada uma nova hora. A economia geral do mundo vê na América do Sul um devir eminente.

Ora, então: a América do Sul são os latinos. Eles o provaram, fingindo-se de confeiteiros nessas decorações de tortas de creme que se multiplicam nas balaustradas e nas cornijas de gesso, em todos os estuários, à sombra da digna cidadela ancestral. De resto, é inegável que os Latinos são o sorriso. Linha, sol, proporção, clareza. No seu coração, uma vassourada nas balaustradas e um pontapé nos confeiteiros! Isto feito, que a América do Sul, acreditando em seu destino, formule seus projetos e desenhe o seu amanhã. Que o planejamento das cidades seja estabelecido. Que ele se traduza em preceitos e em leis. 

Criar, decretar, realizar.

Que o Rio tente este dasafio: fazer frente, pela arquitetura, à paisagem, e não se entrincheirar atrás daquilo que tão cruamente dizia meu amigo Cendrars: “O que quer que eles façam com seu pequeno urbanismo, serão sempre esmagados pela paisagem”. Creio que por um magnífico desígnio, o homem pode aqui mais uma vez realizar o que a Grécia fez na Acrópole e o que Roma fez nas sete colinas: impor-se à paisagem pela arquitetura certa. A Arquitetura é capaz, pela aritmética de sua linha justa, de integrar toda a paisagem.

E Buenos Aires. Oh! Problema árido e apaixonante! Essa cidade, ao desenvolver-se prodigiosamente anula-se ela mesma. Sua vida é sua morte. A corrida em direção à crise é vertiginosa. É necessário recobrar-se. Ainda é tempo, mas deve-se agir. Não existe cidade mais inumana. O homem perdido nas ruas de Buenos Aires quando o barulho dos alto-falantes, da [calle] Florida cessa depois das 18 horas.

Tal como é, nomeei-a “cidade sem esperança”. Não existe nem montanha, nem colina, nem árvore, nem mar, nem céu nesse coração apertado da cidade. Os pampas magníficos estão além, o rio da Prata é

invisível, o céu argentino daqui a pouco não será mais visto ou então será engolido pelas mandíbulas das cornijas que quase se juntam lá em cima.

Palermo nos diz o que fazer. E o Rio nos chama. La Barranca fornece a solução assim como os recifes encobertos diante do porto. A técnica moderna permite realizar a Buenos Aires dos tempos modernos. Se a idéia é clara, se o gesto é simples, se a vontade é segura, pode-se construir sobre o Rio da Prata esta cidade voltada para o oceano, por valorização. Pode-se financiar a operação. Não se deve mais pensar: Nova lorque. Deve-se pensar: Latinos = clareza, ordem, alegria. Devemos fugir do pesadelo do caos das cidades que materializam esta etapa da

época maquinista, cujo primeiro ato já foi encenado e sobre o qual cai a cortina atualmente. 

Devemos abrir o novo ato. Levantar as cortinas sobre um outro empreendimento, sobre diretrizes que provenham de uma digestão, de uma assimilação, de uma conclusão. 

Crepúsculo, talvez, de Nova York.

Aurora, certamente, na América do Sul.

Latinos, eis aqui a voz do seu destino:

Sorridente, claro, belo.

LE CORBUSIER


américa, arquitetura e natureza

A Arquitetura deve responder nitidamente às situações fundamentais que amparam a vida humana. Essas idéias fazem com que nós, na América, tenhamos que nos reconhecer como portadores de uma experiência extraordinária: habitamos uma parte do planeta recentemente inaugurada no plano do conhecimento.

Nesse âmbito de raciocínio há uma dimensão particular, para nós brasileiros e americanos, que é o fato de termos uma experiência que se inicia com o mundo moderno. A idéia de modernidade, como dizem os mais amados filósofos, para nós americanos está centrada no discurso de Galileu sabre o Universo; na Reforma como uma porta aberta, larga contrafação e dogmática e paradigmas; na espetacular aventura que comprova as afirmações da ciência, as navegações. Nós, americanos, somos protagonistas particulares destes acontecimentos porque instalamo-nos nesses novos recintos descobertos como quem ocupa um planeta novo.

A aventura de ocupação desse território é, por outro lado, uma sucessão de horrores e erros trágicos, de escravatura, de extermínio das populações locais, do empreendimento colonial desmantelado o território. Essa história deixou, para nós brasileiros um desenho – no sentido material, gráfico – imposto pela colonização, a linha do Tratado de Tordesilhas, cujo o estigma deve ser contrariado.No âmbito da organização do espaço, enquanto arquitetos, consideramos a idéia de urgência,  de essencial e da oportunidade de fazer aflorar o fundamental, como o horizonte primordial da arquitetura, o horizonte da paz. Teremos que fundar nosso raciocínio na questão humanística da paz para engendrarmos nossos projetos que serão realizações de antigos desejos, fundantes do gênero no universo. Trata-se de estabelecer territórios reconfigurados para que os altos ideais humanos se efetivem. É uma resistência contra a miséria.  

A revisão crítica do colonialismo, quando à questão da arquitetura e do espaço habitado é fundamental para o estabelecimento de uma personalidade, da concretude do que seja ser homem contemporâneo para todos os povos do mundo. Vemos, na Europa, a recontrução de cidades destruídas por guerras infames, sempre as mesmas cidades. Nossos olhos se voltam para a idéia de construir as cidades americanas na natureza, estabelecendo novos raciocínios sobre o estado das águas, das planícies e das montanhas, a especialidade de um continente, novos horizontes para a nossa imaginação quanto à forma e o engenho das coisas que haveremos de construir.    

texto de Paulo Mendes da Rocha